SEVERINO FOIÇADA, UM VALENTÃO POR NATUREZA
Postado em10 Jan 2015 03 30 HISTORIAS DE MERICO

Severino tinha um metro e noventa de altura, bíceps hipertrofiados e mãos calejadas da lida diária com o ferro. E completando as características típicas de um personagem de quadrinho, usava um bigode cujas pontas ultrapassavam os limites do queixo e tão volumoso que, quando falava, parecia fazê-lo por trás de uma densa cortina de pelos.
 
Se apenas a presença daquele homenzarrão em Mericó causava impacto, quando falava este efeito era potencializado, pois sua voz soava como um trovão. Não aquele trovão de explosão abafada e curta duração, mas aquele que dá após alguns anos de seca e que, além de barulhento e duradouro, ribomba pelos ares como se os céus estivessem arrebentando-se aos pedaços e despencando sobre a terra.

Não era homem de vícios, mas gostava de no fim do dia beber uma chamada de cachaça brejeira com anil estrelado na bodega de seu Felizardo, para tomar banho. Afora isso, mascava uma péia de fumo vez por outra.

De poucas falas, o pouco que dizia de si próprio era compensado pelo muito que falavam pelas ruas.  Biluca era quem mais espalhava informações como:  A sua cicatriz fora de uma briga na qual sofreu uma foiçada no rosto, mas em compensação, derrubou três à facada. Mesmo metendo-se em inúmeras confusões, jamais fora preso, pois nunca encontrou polícia disposta a enfrentá-lo.
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- Mas como é que tu sabe disso tudo do homem, se a gente não sabe nem donde ele veio?  Perguntou certa vez seu Felizardo, após longa e fantasiosa narrativa de Biluca.

- Vai dos Brejo da Paraíba, seu Felizardo. Dizem até qui, trabalhano num engenho de rapadura por lá, um caba lhe provocou e sabe o quêle fez? Pegou o miserave e sacudiu dento da fornaia cumo se fosse um fêxe de lenha.

Acreditar em cem por cento do que Biluca dizia era impossível. Mas, referindo-se àquele estranho, desacreditar nos cem por cento também era. Assim, a cidade estava sempre de olho no forasteiro recém-instalado na cidade como ferreiro.

Chegados os festejos da padroeira, Severino resolveu espairecer um pouco com a mulher no pavilhão armado na quadra de esportes, onde cruzou com o valentão filho do prefeito de uma cidade vizinha.

O jovem usava cabelo grande à moda dos anos 70, cavalo de aço, calça boca de sino e camisa aberta até o peito exibindo grosso cordão com medalhão, inspirado em Roberto Carlos em ritmo de aventura.

Assim como bois e cavalos abanam a cauda espantando moscas e mosquitos, balançava ele os braços e mãos para trás enquanto caminhava, abanando não se sabia o que. No seu entendimento, aquele era o jeito de um malandro moderno e esperto andar.

Sempre cheio de gírias e, como diziam os mais velhos, de mugangas e gachimônios, quando entrava em alguma festa a probabilidade de confusão era grande. Como facilitadores das suas arruaças estavam, além do mau caráter, três fatores: era temido pela valentia, admirado pelas moçoilas desajuizadas e filho do prefeito de uma cidade vizinha.

Naquela noite, seguido por dois bajuladores, adentrou ele o pavilhão semeando tensão nos semblantes. Próximo à mesa de Severino, parou, observou indiscretamente os presentes e, mantendo o seu balançado de malandro, falou em tom de discurso enquanto mastigava um chiclete:

- É isso aí malandrage, tá na área agora o preferido do mulheril.

Acentuou-se o mal estar entre os presentes e Severino, discretamente, colou os olhos nele, observando-o da cabeça aos pés, em cada movimento.

- E quem vai dançar com o papai aqui é essa coelhinha bonitinha e assustadinha.  - Falou dirigindo-se a uma jovem que, da margem do dance, assistia as danças com duas amigas.

Jovem simples, moradora da zona rural, não integrava o grupo das suas admiradoras e não queria dançar. Mas ele insistiu e as amigas, cutucando-a, incentivaram-na a ir. Ela foi.

Apercebendo-se da sua ingenuidade, começou ele a dizer-lhe bobagens elogiosas e apertá-la mais do que permitia o tipo de dança e a falta de intimidade entre os dois.

Severino, que viu nele um caso de antipatia à primeira vista, não parava de fitá-lo, principalmente ao perceber que a moça sentia-se incomodada. Para provocá-lo, o rapaz forçou ainda mais a aproximação da moça, que já olhava para os lados em busca de socorro. Severino que, por pouco não se levantou para interferir na situação, mas o rapaz vendo sua reação fez breve pausa, fixou o olhar nele e falou:
     
 - Qualé a sua, bigode de arame? Tá vendo o que aqui? - Vociferou e voltou a dançar.

- Você vai deixá a moça em paz, ou vai querê levá uns tapaôi aqui mermo, na frente de todo mundo?  - Falou controlando a voz, para não chamar a atenção, bem próximo do casal.

- Vai procurar tua turma, seu Mané da Vazante! -  Respondeu sem interferir na dança e forçando, ainda mais, a jovem.

Severino segurou-o pelo pescoço com tal força que o fez soltar a moça que saiu correndo. Ele tentou reagir, mas logo sentiu as mãos travadas nas costas por uma única mão do ferreiro. Encostando o rosto do provocador num dos mourões de sustentação das barracas do pavilhão, falou, enquanto o jovem, imobilizado, contorcia-se e bufava de raiva.
 
- Iscute aqui, seu cabuêta fí duma égua! Suma-se daqui agora mermo! E seu ainda le incontrá pur essas banda, criano cunfusão e desrespeitano fia alheia, le matá eu num mato não, mas prometo le arrancá os predicado de peixeira e jogá pros cachorro... - Agora, vou le sortá e dane-se daqui sem oiá nem pra trai!

Procurando inutilmente seus aduladores, o filho do prefeito saiu sem olhar para trás, abanando, só que com menos intensidade, as mãos. Já na porta de saída, vingou-se do jeito que pode:

- Cidade véia reieira, essa Mericó. Só tem beradêro! - Falou. Mas falou baixo para não ser ouvido.  

A festa continuou. A fama de Severino foi às alturas. Recebeu cumprimentos de vários cidadãos e até o presente de uma galinha assada arrematada no Leilão por seu Felizardo.  

O delegado precisava lhe falar, mas receoso da sua fama, resolveu não intimá-lo. Convidou-o para, no dia seguinte, ir a sua casa tomar uma xícara de café e terem uma prosa.

- Isso aqui, seu Severino é só uma conversinha sobre os acontecidos. Aquele cabra é um baderneiro, mas é filho dum prefeito e tenho de dar uma satisfação. Mas, o senhor chegou aqui há pouco tempo e já se metendo numa encrenca!

- Delegado, sou homi de increnca não! Procuro é vivê na paz de Nosso Sinhô.

- Então como explica, ter se travado com aquele sujeito e ainda jurá-lo de morte?
 
- Isso é coisa da natureza. Num tem nada cum matá ninguém, não.

- Da natureza? Mas que conversa é essa?

- É assim cuma um gatim que sincontra cum cachorro. O bichim se arrupia, levanta o rabo, o espinhaço e faz uma cara feia. Nessa hora, na fala dos bicho, ele deve tá dizeno: Num venha não, viu! Sou brabo, posso matá você! E acontece mermo do cachorro acreditá na cunversa do gato e ir simbora. Mai num tá veno que um bichano num ia matá um cachorro!

Diante da tranquilidade com que o ferreiro dizia aquelas coisas, aparentemente, ingênuas, o delegado se viu forçado a relaxar e explorar a questão:

- É a primeira vez que ouço essa história de Natureza para explicar uma arenga.

- Mas é assim, mermo. O véi meu avô dizia, e é a mais pura verdade: a maió prufessora da gente é a natureza. É só olhá cumo ela faz, que a gente aprende.

- Aprende como e o que? Me explique melhor isso.

- Outo dia, meu cachorrim cumeçou cuma latideira danada. Fui vê o qui era. Apôis bem, tava o bichim numa peleja cum boi qui se achegou do oitão quereno bebê a água das galinha. Fiquei ali assistino aquela aula de natureza. O boi era grandão e forte e o cachorro piqueno, mas de goela afiada. E inquanto o boi se assoprava pelas venta, o cachorrim, na fala dos bicho, num parava um minuto: vá simbora, ou eu mato você! Num mexa im nada! Aqui é minha casa! Suma daqui! Eu le mordo nas venta... ói aqui meus dente! Eu sangro você! Ele sabia qui num ia matá o boi coisa ninhuma, mas cuma tava defendeno o qui era seu, falou dum jeito qui o boizão acreditou, teve medo e foi simbora.

- É engraçada e, ao mesmo tempo, muito boa essa sua observação.

- Pois sou iguá a um cachorrim magrelo e latidô... O resto é invenção do povo.

- Não me leve a mal pela pergunta, mas, e a história da foiçada no rosto que levou numa briga onde derrubou três?

- Essa é pá sirrir, mermo, seu delegado. Foi uma foiçada, mai num foi de briga não. Foi coisa de menino maluvido. Meu pai, que também era ferrêro, num deixava eu mexer nas coisa dele pur causa dos perigo... Teimoso fui batê uma foice sem sabê aí a danada se quebrou, um pedaço avuou, me acertou na cara e iscreveu uma lição sobre a disobidiência - Falou, fez uma pausa e continuou.  - Agora, o povo gosta de históra, gosta de pabulagem.  Eu nem ligo. Deixo dizê e matutá o qui quisé. O qui mimporta, é o queu sou.

- Mas o senhor ameaçou o rapaz de morte. Isso é grave.
 
- Mai num tem pirigo, não! - Falou, pensou um pouco e continuou em tom reflexivo: - Eu tem cumigo qui o criadô quando fez o mundo e botô os vivente aqui, disse assim: Pronto! Vivam aqui, qui isso é de vocês! Então-se, se é assim, esse mundo é dos home, das mulé, dos minino, dos véi, dos preá, dos passarim... É dos vivente, seje gente, seje bicho bruto. E se ele butou os vivente aqui foi prá vivê e não prá mata uns os outro. Tô certo?

- É. Dizer o que? Tá certo, sim.

- Seu delegado, nessas coisas de matá eu tem inté uma fraqueza qui só o povo lá de casa sabe, mai vou le dizê: Se prá cumê uma granvanha de carne eu tivesse de matá um bicho, eu num cumia era nunca. Ia passá a vida cumeno feijão cum farinha, ovo e raspadura.  Inté num dia ispeciá qui a gente come uma galinha, quem mata é a mulé. Ela se ri e diz qué bestêra minha. Mai num tem quem faça eu matá. Cumê eu como, mai num mato.

- Seu Severino, sabe que gostei foi muito dessa prosa! Mas lhe dou um conselho: tome cuidado com esses imbuanceiros que andam por aí. E, se precisar, pode contar comigo.

- Muito gradicido, seu delegado, mai quero só é vivê minha vida quetim, no meu cantim.

- Pois irá viver. E deixe que povo que continue inventando e pensando o quiser do senhor. Ligue pra isso não.

- Seu delegado, no ABC da natureza, aprendi qui num importa as parecença, purquê o qui é é e o qui num é num é.

- Tá mais que certo! E digo mais: o senhor é um cidadão de bem. Tem a minha amizade e a minha admiração.


Aldenir Dantas

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