O POÇO DE MANEZIM
Postado em25 Jan 2015 00 15 HISTORIAS DE MERICO

Era meio dia quando chegaram ao poço que, segundo seu Bilu, já era daquele jeito: sombrio, assustador. A pesca havia sido boa e o céu se enevoava como se fosse cair uma chuva torrencial.

Mais de meia légua os separava da cidade. Era hora de voltar. Mas resistir a um mergulho naquele calor era quase impossível. E ainda precisavam tirar a lama da pescaria e a catinga do peixe.

não era a primeira vez que chegavam até ali pescando e, como exímios nadadores, jamais tiveram problemas em tomar banho ali ou em qualquer lugar. E aquele poço era, para eles, o melhor de todos. Tinha a profundidade e o tamanho necessários para  exibirem as suas habilidades de nadadores e mergulhadores.

Repetindo compulsoriamente uma brincadeira conhecida de todos, colocou-se o grupo sobre o rochedo mais alto  e Manezim, com uma pedra branca e arredondada na mão, gritou:

- Galinha gorda!

- Gorda é ela! - Responderam os demais.

- Cadê o sal?

- Tá na panela!

- E a mistura?

- É rapadura!

- Vamos a ela?

- Vamos! - Gritaram e, após Manezim atirar para o lado extremo do poço a pedra, todos mergulharam para procurá-la. Essa era a brincadeira: ganhava quem a encontrasse e a brincadeira prosseguiria.

A pedra caiu no lado mais fundo do poço. Ninguém a encontrava. Era muito escuro lá embaixo. O céu carregando-se de pesadas nuvens escurecia ainda mais o ambiente. Um a um foi emergindo sem a galinha. Todos subiram com o fôlego esgotado, menos Manezim. Era de causar inveja aos colegas tamanho fôlego. Parecia um peixe. Aquele tempo todo embaixo d’água.

O tempo foi passando e a impaciência, a preocupação, o medo e o desespero começaram a tomar conta de todos. O céu, cada vez mais carregado, ameaçava despejar-se em chuva. Alguns dos meninos já choramingavam. Os mais destemidos continuavam mergulhando e tateando as profundezas, mas, na medida em que avançavam para o lado da velha baraúna, encontravam apenas raízes e mais raízes num grande emaranhado que jamais imaginaram existir ali.

 - Bilu, corra na casa de seu Chico Jacó! Vá buscá ajuda, home!

Bilu foi correndo, enquanto uns choravam e tremiam de medo e frio e outros,  mais velhos e corajosos, continuavam mergulhando.

As nuvens cada vez mais escuras davam àquele meio-dia um aspecto aterrador. A espera por ajuda transformava minutos em eternidades. A chuva começou cair forte e acompanhada de estrondosa trovoada e furiosa ventania. Ao chegar, protegido por pesado capote, Chico Jacó encontrou os meninos acocorados, colados uns aos outros e chorando protegidos pelas bordas de um lajedo.

A chuva cada vez mais se intensificava. A velha baraúna contorcia-se e gemia com a força dos ventos. Do céu escuro e riscado por raios, parecia que alguém despejava baldes d’água sobre a terra. Pouco tempo havia se passado e os córregos já chegavam com grandes enxurradas avermelhando as águas do rio.

Seu Chico, pensativo, analisou todas as possibilidades e não encontrou alternativa, senão, conduzir as crianças até sua casa, deixá-las sobre os cuidados da esposa e, mesmo em meio àquela chuva que mais parecia um dilúvio, dirigir-se à cidade para dá ciência do caso. Assim o fez.

Seu Bilu dizia que a chuva daquela tarde fora a maior de Mericó. Casas caíram, açudes e barreiros foram embora e o rio teve a maior enchente de todos os tempos.

Um mês após o ocorrido, um tio de Manezim, que tinha ofício de pedreiro, construiu o pequeno cruzeiro ao pé da baraúna. Um amigo que o acompanhou na construção disse que, concluída a rústica obra, fez ele o sinal de cruz e falou com os olhos chorosos voltados para o céu:

- Essa é a cruz de Manezim qui, cum a graça de Nosso Sinhô, nunca haverá de deixá qui outra famia passe pur uma dô assim tão duída.

E permanecia ali a cruz quase secular, guardiã da memória do menino pescador que, com sua morte, imortalizou aquele lugar.


Aldenir Dantas

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