Há bilhões de indivíduos perdidos em movimentos de manada, buscando inserção em contextos efêmeros sem que isso lhes proporcione uma migalha de autorrealização
Há 44 anos escuto pessoas. E não me refiro aqui àquelas que entrevistei atuando como jornalista. Desde a adolescência, talvez em razão de minha prática espiritual, inspiro confiança a criaturas que, mergulhadas no mar revolto de seus conflitos, sentem a necessidade de abrir o coração para se aliviarem, tentar um conselho ou simplesmente obter um olhar compassivo. É com base nessa experiência que acredito serem as nossas frustrações resultado da falta de autoconhecimento e, sobretudo, da negação de nossas especificidades, aí incluídos os dons que recebemos da vida.
Em nossa época, balizada por “tendências” ditadas pelos agentes econômicos, esse desvio se tornou um problema de saúde pública. Há bilhões de indivíduos perdidos em movimentos de manada, buscando inserção em contextos efêmeros sem que isso lhes proporcione sequer uma migalha de autorrealização - aquele sentimento de inteireza e contentamento que surge do exercício de uma missão que dá sentido e serventia às nossas vidas.
São pessoas que jamais pararam para ouvir a si mesmas e, por isso, também jamais estabeleceram um norte, um rumo para a própria caminhada. Provavelmente descerão à sepultura repetindo queixas e listando culpados, sob o clamor recorrente por um mundo perfeito que não ousaram construir.
A evidência dessa patologia se manifesta no número avassalador de profissionais despreparados e descomprometidos com o que fazem, no mercenarismo em áreas vitais da atividade humana, na nossa dificuldade em realizar trocas (inclusive afetivas), na explosão de gurus e personal assistants para nos guiarem em coisas triviais e, principalmente, nos sintomas de ansiedade e depressão que fazem o negócio dos psiquiatras e psicólogos.
Sim, num mundo superpovoado e interligado essa é uma questão crítica, mas não exclusiva da modernidade. O problema é antigo, diz respeito às pulsões egóicas, marcadas pelo medo, e à ignorância e a desconexão com a essência do ser, o self.
Na tradição cristã, ele aparece com clareza numa das mais importantes alegorias do evangelho: a parábola dos talentos. Ali, o senhor de uma propriedade que reparte talentos (moeda antiga) entre três empregados, para que eles os administrem na sua ausência, simboliza a vida em sua distribuição de dons e habilidades aos seres distintos de sua teia. A alguém podem ser confiados 10 talentos, a outro 5 e a outro um, diferenças que extrapolam o mero sentido quantitativo.
Na parábola, só o funcionário que recebeu um talento não multiplicou o recurso recebido. Ele não se sentiu aquinhoado, teve medo de arriscar o que lhe parecia pouco, enterrou a moeda e, no retorno do patrão, perdeu o emprego. Em vez de centrar em suas possibilidades de um jeito criativo, ele olhou para o lado, imaginou uma “tendência” e negou a si mesmo na imobilidade.