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Aconteceu com o velho Chico Cotó. Famoso por ter uma perna mais curta do que a outra, por sua coleção de romances, sua postura anti-clerical e seu linguajar bocageano. As beatas de Mericó chegavam a sentir um arrepio na espinha quando, de supetão, topavam com ele numa esquina.
- Credo em cruz! Isso, quando morrer, não quero nem pensar! Nosso senhor Jesus Cristo e a virgem Maria Santíssima que nos guarde!
- Apressa as passadas, comadre Severina... Esquece esse herege! A missa vai começar.
E chegou um tempo de doenças. Morreu muita gente em Mericó. E Chico Cotó, depois de uma semana acamado, sem um cristão decente que lhe fizesse quarto, revirou os olhos e, diante do olhar assustado da negrinha de criação, que o assistia na sua viuvez, e de um pândego admirador das suas esquisitices, foi considerado morto.
- Era um herege. Nunca foi à missa.
- Era, comadre Tonha! Mas também era filho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Vamos para o enterro.
- É. Vamos rezar pela alma desse pecador.
A falta do que fazer e a popularidade do velho Chico entre os boêmios ajuntaram algumas dúzias de pessoas no seu sepultamento.
E antes que chegasse o pingo do meio dia, o cortejo seguiu em direção ao campo santo, distante uns três quilômetros da vila.
As beatas, desafinadas, cantavam ladainhas acompanhadas pelo resto do cortejo, enquanto quatros homens, arranhando-se na jurema que invadia as veredas esburacadas, conduziam Chico Cotó a sua última morada, numa rede, impecavelmente branca, emprestada por dona Zefa da Santa.
Tempo de inverno bom, aquele! O barro de louça escorregadio dificultava o trajeto e o mato viçoso tomava conta do caminho e transformava, ao derredor, o que há pouco era uma capoeira acinzentada, num denso e verde matagal.
Contritos, naquele ato de fé e piedade cristã, e atentos aos cantos puxados por dona Zefa da Santa, apenas os meninos encontravam motivos de graça no fúnebre cortejo. Era assustador, mas também engraçado, o defunto balançando na rede para lá e para cá. Era assustadora a magreza, as eternas roupas escuras e o cabelo colado no casco de dona Zefa, mas era engraçada a sua voz estridente, tal qual um ferro batendo numa bigorna.
Estavam na metade do trajeto. Mulheres e meninos acompanhavam dona Zefa no seu canto preferido “Ave, ave, ave Maria... Ave, A...”, quando o “A” foi complementado por um alto e sonoro “atchim!”. Pararam, entreolharam-se... Não era possível! O espirro parecia vindo do morto. Não houve tempo para muito pensar. Após uma sacudidela do defunto, suas mãos brancas e enrugadas surgiram segurando as bordas da rede e logo apareceu sua cabeça seguida de um gesto de espanto e de retumbante grito:
- Bando de Satanás! Prá onde estão me levando?
Num abrir e fechar de olhos, o velho estava só, estirado sobre a rede branca no meio do caminho, praguejando e gemendo com as dores causadas pela queda, pois, seus carregadores, soltando-o, correram jurema adentro com os demais integrantes do cortejo.
Em meio ao quebra-quebra de garrancho, ouvia-se choro e grito de menino chamando pela mãe e, vez por outra, uma das beatas, tendo a saia presa em um galho de jurema, sem olhar para trás, gritava em tom de exorcismo:
- Larga minha saia, herege do cão!
Chico Cotó viveu mais de uma dezena de anos e nesse ocorrido encontrou um bom motivo para as suas chacotas com as beatas de Mericó. Segundo ele, algumas ficaram só de calçola e califon de tanto correr na jurema fechada. Em resposta, elas viravam o rosto, torciam o nariz e diziam:
- É tão ruim, que nem o Sapirôco quis por lá. Mandou de volta.
conto das terras do mericó - 6 por Aldenir Dantas *
Um quase sepultamento
Não houve tempo para pensar. Após uma sacudidela do defunto, suas mãos brancas e enrugadas surgiram segurando a rede e logo apareceu sua cabeça seguida de um gesto de espanto e de um retumbante grito: "Bando de Satanás! Prá onde estão me levando?"
* Conto integrante do livro inédito Histórias Mal Contadas das Terras do Mericó. Aldenir Dantas é poeta e escritor, especialista em Ensino à Distância e mestrando em Ciências da Educação